“Isso não é Socialismo!” E Liberalismo?

“Isso não é Socialismo!” E Liberalismo?

Luiz Renato Oliveira Périco | 27 de fevereiro, 2017

Valter Campanato/ABr

“Isso não é socialismo!”, “Isso não é comunismo!” É comum ouvir essa explicação de marxistas quando querem defender sua ideologia em contraposição ao chamado “socialismo real”, ou seja, quando mostramos os resultados alcançados pelos governos e países que se inspiram em Marx. Qualquer um que já discutiu com um colega da esquerda socialista já ouviu isso. Em textos na internet e em livros, isso é reiteradamente lembrado. Mesmo na TV, quando confrontada, Luciana Genro lançou mão desse argumento.

De fato, segundo os critérios de Marx, é possível afirmar que Cuba, China e Coreia do Norte não são socialistas – e que nem mesmo a União Soviética e a Alemanha Oriental foram qualquer uma das duas coisas. Como resume Bresser Pereira:

“(…) Marx, na Crítica ao Programa de Gotha (1875), fez sua previsão fundamental: a sociedade comunista sucederia ao capitalismo, passando por duas etapas.

A primeira seria a socialista, iniciada com a tomada do poder pelo proletariado, a extinção da propriedade privada dos meios de produção e a instauração da ditadura do proletariado. O Estado (e, portanto, também o Direito) ainda subsistiriam na transição na medida em que continuariam a existir interesses e valores burgueses a serem controlados. Os salários ainda seriam pagos de acordo com a produtividade do trabalho, não só porque não havia ainda a futura abundância, como também porque permaneciam hábitos burgueses arraigados. Prevaleceria nesta fase a igualdade, definida pelo fato de que cada um recebe do acordo com o que produziu. Mas essa igualdade é injusta, segundo Marx, porque os homens não são iguais entre si: uns são mais fortes, uns mais capazes, outros menos, uns têm mais filhos do que outros e, desta forma, o resultado final da igualdade nos salários é a desigualdade. Esta fase seria substituída, dentro de um prazo não definido, pelo comunismo, que seria marcado pela solidariedade, pela abundância, pela revogação do Direito e a superação do Estado, pela liberdade e plena realização das potencialidades humanas, pela remuneração de acordo com as necessidades de cada um.” ¹

Assim, é certo que o estágio comunista nunca foi atingido (é atingível? Creio que não) e a descaracterização dos países citados acima como socialistas, como o próprio Bresser Pereira faz:

“Para Marx o socialismo sucederia diretamente e em breve o capitalismo. Foi esta perspectiva que levou os socialistas à revolução bolchevique de 1917 e às demais revoluções comunistas deste século. Mas em nenhum dos países em que foi extinta a propriedade privada dos meios de produção instalou-se o socialismo previsto por Marx, ainda que os novos governantes pretendessem seguir suas ideias. A sociedade sem classes, a remuneração segundo os méritos de cada um, o domínio da classe operária, ou mesmo dos “soldados, operários e camponeses”, a tendência de uma liberdade cada vez maior — nada disto ocorreu. Muito pelo contrário, tomando-se como modelo a União Soviética, o que ocorreu foi a instalação de um sistema totalitário de governo no tempo de Joseph Stalin, no qual as liberdades mais elementares dos indivíduos foram negadas; foi o estabelecimento de um sistema econômico baseado nos privilégios: foi o domínio político e econômico de uma tecnoburocracia estatal apoiada no Partido Comunista e na alta administração pública e na direção das empresas estatais; foi a montagem de uma sociedade e de um Estado que são um dramático e vivo testemunho de que o socialismo não é a etapa histórica imediatamente posterior ao capitalismo”.

Não seria o socialismo real, assim, socialismo “de verdade”. Os que argumentam dessa forma jamais diriam o mesmo do liberalismo, embora Mises nos lembre em sua obra “Liberalismo”:

“Os filósofos, sociólogos e economistas do século XVIII e do princípio do século XIX formularam um programa político que serviu como diretriz para a adoção de políticas sociais, primeiro na Inglaterra e nos Estados Unidos, depois para o continente europeu, e, por fim, também, para outras partes do mundo. Mesmo na Inglaterra, que tem sido chamada a terra natal do liberalismo e um país liberal modelo, os proponentes das políticas liberais nunca lograram alcançar todos os seus propósitos. No resto do mundo, apenas partes do programa liberal foram adotadas, enquanto outras, não menos importantes, foram rejeitadas de princípio, ou descartadas após algum tempo. Será apenas com um certo exagero que se pode afirmar ter o mundo, alguma vez, vivido uma era liberal. Nunca se permitiu que  o liberalismo fluísse totalmente

(…)

Se alguém desejar saber o que é liberalismo e que objetivos tem, não poderá, simplesmente, voltar-se para a História com o objetivo de informar-se e inquirir sobre o que defendiam os políticos liberais e as metas que lograram alcançar, porque, em nenhum lugar, o liberalismo conseguiu executar seu programa tal como pretendia.”

Onde e quando a liberdade de ir e vir, de expressão, de crença e de consciência, de imprensa foi plenamente livre de assédios, onde e quando a propriedade foi plenamente respeitada, inclusive pelo Estado e suas desapropriações, onde  e quando Estado foi amplamente retirado da economia e dos rumos da sociedade, reduzindo-se estritamente ao seu reduzidíssimo papel de “guarda noturno”, de garantidor da segurança interna e externa e dos contratos?

Nunca existiu essa “Terra da Liberdade Plena” na história da humanidade. Nunca existiu m país liberal “de verdade”. O mercado livre ainda é uma utopia. Podemos dizer, como eles, que “isso não é liberalismo!”. ²

Isso não impede que o liberalismo seja medido pelo “liberalismo real” pelos seus detratores –  o que não é nenhum demérito, como Mises lembra na mesma obra:

“Em que pese ter sido breve e muito limitada a supremacia das ideias liberais, ainda assim foram suficientes para mudar a face da terra. O desenvolvimento econômico ocorrido foi extraordinário. A liberação do poder produtivo do homem fez multiplicarem-se, em muitas vezes, os meios de subsistência. Às vésperas da Grande Guerra, que foi, ela própria, resultado de uma longa e acirrada luta contra o espírito liberal, e que apressou o período ainda mais amargo de ataques aos princípios liberais, o mundo encontrava-se incomparavelmente mais povoado do que nunca, e cada habitante podia viver de modo incomparavelmente melhor do que nos séculos precedentes. A prosperidade que o liberalismo criara reduziu consideravelmente a mortalidade infantil, que se constituíra impiedoso flagelo em épocas precedentes, e, como resultado da melhoria de condições de vida, fez ampliar a expectativa média de vida.

Não se diga que tal prosperidade apenas tivesse fluído para uma seleta classe de privilegiados. As vésperas da Grande Guerra, o trabalhador da indústria nas nações europeias, nos Estados Unidos e em possessões inglesas d’além-mar, vivia melhor e mais prazerosamente do que um nobre de não muito tempo atrás. Não apenas podia comer e beber segundo seus desejos, mas podia dar aos seus filhos uma educação melhor. Podia, também, se o desejasse, fazer parte da vida cultural e intelectual de sua nação e, caso possuísse talento e energia suficientes, podia, até mesmo, sem dificuldade, alçar a uma posição social mais alta. Era, precisamente, nos países que mais profundamente adotaram o programa liberal que o cume da pirâmide social se compunha, essencialmente, não daqueles que, por força do berço gozavam de posição privilegiada, em virtude da riqueza ou da alta posição de seus pais, mas daqueles que, em condições desfavoráveis, encontraram a saída da pobreza por seus próprios meios. As barreiras que, em outros tempos, separavam senhores e servos haviam caído. Agora, havia apenas cidadãos com direitos iguais. Ninguém mais era prejudicado ou perseguido por sua nacionalidade, opiniões ou fé. As perseguições políticas e religiosas internas haviam desaparecido e as guerras internacionais começaram a tornar-se menos frequentes. Os otimistas já saudavam a aurora da Idade da Paz Eterna”.

É essa comparação real, calcada na realidade, na concretude, na “materialidade” dos Estados liberais e socialistas que mostra a superioridade de cada ideia, não a sua perfeição ideal. Talvez o liberalismo não tenha nem mesmo entregado tudo o que tenha prometido, mas a história – e não a teoria, as ideias – certamente mostra que ele entregou mais e melhor que o socialismo, e isso sem ser plenamente implantado.

Não precisamos dizer que “isso não é liberalismo”. Embora ainda não o seja plenamente – talvez nunca o seja -, os resultados “materiais”, reais, concretos estão do nosso lado.


[1] PEREIRA, Bresser. As Duas Fases da História e as Fases do Capitalismo

[2] MISES, Ludwig von. Ação Humana.

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