Luan Sperandio | 29 de maio de 2017
[Publicado originalmente no Instituto Mercado Popular]
Na década de 1950, quando da ascensão do Estado de Bem-Estar Social, o jurista e economista francês Bertrand de Jouvenel era uma das vozes críticas às políticas públicas vendidas como redistribuição de renda. Ele argumentava que, se algum grupo social se beneficiasse com o inchaço do Estado, provavelmente seria a classe média, e não os mais pobres.
Quase ninguém questiona a atuação do Estado para garantir o mínimo para a população mais vulnerável. A redução das desigualdades sociais está, inclusive, no próprio texto das leis orçamentárias. Mas nada garante – como muitas vezes esquecem os juristas – que tudo num ‘Estado de Bem-Estar Social’ tenha o efeito prático de: (i) priorizar a ponta mais frágil da distribuição de renda; ou (ii) reduzir a desigualdade na distribuição de renda.
As políticas públicas empacotadas como parte do Estado de Bem-Estar podem simplesmente ter o efeito contrário, beneficiando a ponta mais rica e agravando a desigualdade. Manter essa estrutura também exige impostos e burocracia, cujos efeitos colaterais geralmente não favorecem um mundo mais igual.
Infelizmente, esse parece ser o caso de boa parte do Estado de Bem-Estar Social brasileiro.
O Brasil tem um dos Estados de Bem Estar Social mais caros do mundo, sob qualquer ponto de vista. Mesmo quando comparamos países brasileiros com os ricos europeus, os gastos como proporção do PIB são parecidos ou maiores. Quando a comparação é mais justa, com os países emergentes, o Brasil se destaca por políticas amplas e generosas.
O problema, porém, é que a estrutura desse Estado de Bem-Estar brasileiro não é pensada para beneficiar quem mais precisa de ajuda.
Segundo o Ipea, os 10% mais pobres proporcionalmente pagam 44,5% mais impostos do que os 10% mais ricos, mas grande parte das políticas sociais bancadas com esse dinheiro não beneficiam os brasileiros com menor renda.
Um levantamento de Marcos Lisboa estimou que apenas 16,4% do orçamento federal seja destinado aos 45% mais pobres, ao passo que 83,6% dele é alocado para programas que beneficiam os 55% de maior renda. Isso ocorre porque há várias políticas do Estado brasileiro que, embora vendidas com finalidade ‘social’, tem como resultado a concentração de renda.
Alguns dos exemplos mais relevantes estão nesse estudo publicado pelo Ipea. Algumas das linhas mais caras do orçamento federal tem efeito concentrador de renda.
O funcionalismo público brasileiro, por exemplo, remunera muito mais que a iniciativa privada para cargos equivalentes, garantindo a boa parte dos servidores públicos federais uma remuneração próxima aos 1% mais ricos do país.
O caso mais relevante provavelmente está na Previdência, maior e mais cara atividade do Estado brasileiro. Embora representem apenas 4% dos beneficiários e não façam parte de grupos vulneráveis, os funcionários públicos aposentados e pensionistas são responsáveis por cerca de 20% das despesas com previdência no país. Regras de aposentadoria por tempo de contribuição beneficiam trabalhadores com maior salário e carteira assinada, em detrimento dos mais pobres que se aposentam por idade.
Na educação, as coisas não melhoram muito: nas universidades públicas, 59,9% dos alunos estão entre os 20% com maior renda. Este Mercado Popular produziu um ilustrativo paper com dados da PNAD sobre o tema, que pode ser lido aqui. O sistema de educação pública, no Brasil, tem dado prioridade orçamentária justamente aos seus braços concentradores de renda – em detrimento de creches, por exemplo. Este caráter concentrador, assim como a prioridade invertida, fica claro nos três gráficos abaixo.
O primeiro, conhecido como “Curva de Heckman” mostra o benefício social do investimento em cada estágio da educação. Ela reflete uma das principais conclusões da pesquisa que deu um Nobel ao economista James Heckman. A ideia é clara: se o Estado buscasse o maior retorno social possível, o ideal seria investir cedo, preferencialmente na primeira infância.
O Estado brasileiro gasta muito em educação na comparação internacional, mas seu foco é em universitários, o oposto do que aconteceria caso o foco fosse no retorno social.
E, afinal, quem se beneficia com essa escolha?
A redistribuição às avessas, isto é, dos pobres para os mais ricos, não é exclusividade do Brasil. Evidências como este estudo que envolveu as nações da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) vão na mesma direção.
Nele, constatou-se que as transferências fiscais destinadas aos 20% de maior renda são maiores do que as que chegam aos 20% mais pobres em países como França, Itália, Luxemburgo e Suécia. Ademais, na grande maioria dos países estudados, mais da metade da transferência fiscal vai para a classe média.
Assim, percebeu-se que a regra é a de que serviços públicos, gratuitos e universais frequentemente priorizam a classe média, e não os mais pobres. Trata-se do mito do “Governo Robin Hood“.
Boa parte do Estado de Bem-Estar social não prioriza os mais pobres, em grande parte do mundo, mas foram criados com esse objetivo. Esse descompasso entre intenção e resultado já foi estudado por Aaron Director, popularizando esse padrão sob o nome de Lei de Director.
A ideia é que, numa democracia moderna com eleições majoritárias, o grupo dominante quase sempre será formado em sua maioria por quem está no meio da distribuição de renda. Tamanha força se refletirá em mais transferências do Estado de Bem-Estar para a classe média, assim como menor custo para este grupo.
Um dos mecanismos mais comuns de transferência utiliza como desculpa a igualdade, ou isonomia, no tratamento do Estado a todos os cidadãos, impedindo que a lei priorize qualquer grupo. Não por acaso, Director se referia especialmente às políticas universais, que se caracterizam por não diferenciar nenhum cidadão. Faz pouco sentido quando lembramos que o objetivo do Estado de Bem-Estar é tratar desigualmente os desiguais.
O contrassenso das políticas universais é destacado pelo economista Ricardo Paes de Barros, técnico do IPEA conhecido como “pai do Bolsa Família”, por grande influência nas políticas sociais federais entre os governos FHC e Lula. Segundo ele, que desde sua saída do governo em 2014 tem se dedicado a estudar o problema da educação:
O plano do governo diz que, daqui a dez anos, teremos 50% das crianças nas creches. Mas o que precisamos é de um plano que cuide de 100% das crianças aqui e agora. (…) A creche aumenta mais a renda da família que o Bolsa Família. E faz isso de forma autônoma. Agora, existe um problema com as creches no Brasil que chega a ser uma maluquice: a maior parte das creches públicas é usada por mães que não trabalham. Existe hoje espaço nas creches brasileiras para abrigar a vasta maioria das mães pobres que trabalham. Mas não se dá prioridade a elas. O Ministério Público diz que o direito à creche é universal. (…) A política de creches deveria ser focalizada em quem precisa.
Vale ressaltar que criticar o modelo de Bem-Estar Social tradicional não é ser contra qualquer política de redistribuição ou serviço gratuito, mas reconhecer que o atual modelo falha em atingir seus objetivos declarados. A universalidade, ou não-priorização, gera um ambiente onde nem sempre o custo-benefício se justifica sob o ponto de vista da justiça social.
A boa notícia é que é perfeitamente possível diminuir o Estado de Bem-Estar Social e melhorar o auxílio social aos mais pobres, simultaneamente. O Bolsa Família é um exemplo disso. Ao focar num grupo vulnerável, o programa vai de encontro às políticas universais, e justamente por isso é barato. Seu custo não chega a 5% do gasto federal com previdência, com benefício amplamente reconhecido por economistas. Não por acaso, reafirmando a lei de Director, os gastos com previdência são politicamente mais protegidos do que o Bolsa Família.
O Prouni é outra política pública que foca em quem mais precisa, além de ser relativamente barato também por seu caráter extrafiscal. Medidas como o fim do Ciência Sem Fronteiras para a graduação, que beneficiava estudantes de alta renda e possuía enormes distorções, além de ser bastante dispendioso, bem como as recentes alterações no BNDES mostram que é possível reverter a parcela anti-social do Estado brasileiro.
Tanto no ProUni quanto no Bolsa Família, a transferência do governo para o cidadão não passa por muitos túneis burocráticos. É praticamente direta, levando a maior efetividade nos repasses para os beneficiários, como houve com o Programa Bolsa Família ao substituir o Fome Zero.
Simplicidade, foco em prioridades e poucos intermediários, eis a receita que deu certo nos dois casos. O custo de não aprender com os bons exemplos é o que assistimos hoje: um Estado falido gera desemprego e instabilidade, que prejudicam especialmente quem é mais pobre; os maiores impostos da América Latina dificultam ainda mais a situação; e tudo isso para sustentar um sistema ineficaz em promover justiça social.
É difícil imaginar uma receita mais certa para o Mal-Estar Social.
Luan Sperandio é coordenador local do Students For Liberty Brasil.
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