Cristiano Ramos | 23 de agosto de 2013
A todos os estranhos amigos que dedicam mais respeito à contradição responsável do que ao elogio negligente.
Nunca foi tão apropriado falar ou escrever sobre a ética do compadrio nas artes e na crítica, porque sua lenta e segura caminhada chegou a estágio avançado, alcançou momento simbólico: os adeptos da mesma começam a chamar os divergentes de “antiéticos”. Se antes os paneleiros demostravam vergonha, deixavam nítido seu constrangimento, agora eles revertem o jogo, põem em dúvida o caráter de quem se nega à lógica da camaradagem institucionalizada, que submete a honestidade intelectual ao julgo da política da boa e oportuna vizinhança.
Lugar-comum exigir que políticos e magistrados “cortem na carne”, por exemplo. Contudo, se um artista questiona o comportamento da classe, ou se um crítico discorda abertamente da postura de outro, imediatamente alguém acusa de deselegância. Não se trata de usar termos ofensivos, de rudeza – mesmo que tenha sido ressalva cuidadosa, pisando em ovos trincados, continuará sendo tomada como atitude deselegante, porque a descortesia não está nos modos, nas palavras, mas na própria iniciativa de provocar o debate, de confrontar o credo corporativista.
A coragem, que é festejada quando assoma entre promotores e parlamentares que combatem a corrupção, torna-se despropositada se motivo for denunciar favorecimento no campo das políticas culturais, para citar outro exemplo. Não precisa, porém, ser caso tão grave; basta que a suposta bravura sustente o trabalho de criação ou de crítica, logo o sujeito será chamado de enfant terrible, será apontado como polemizador à procura de fama.
Melhor, que se sublinhe: integridade, correição, firmeza moral, tudo isso pode e costuma girar bem em torno das biografias e discussões sobre artistas e críticos, desde que caráter tenha sido exposto em lutas contra ditaduras, preconceitos, capitalismo, mercado, elites etc. Se, no entanto, essas mesmas pessoas começarem a militar na própria sala de jantar, problematizando os fazeres artísticos ou críticos, sempre existe a polícia camarada para dizer que eles deveriam se ater ao exercício comezinho de suas profissões, que esse negócio de lavar roupa suja compromete a qualidade do trabalho; que, enfim, ninguém está interessado em seus valores morais.
A ética do compadrio torna as contradições invisíveis, apagadas pelo dia-a-dia da camaradagem. É o caso do escritor que recebe todo elogio como válido, mas toma qualquer senão como ofensa pessoal e praticamente indesculpável. Alguém já viu autor reclamar dos elogios que recebeu em resenha, que são inaceitáveis, porque o texto não exemplificou suficientemente? Ou artista bajulado denunciar que o crítico gastou montes de adjetivos exagerados ou impressionistas, do tipo “livro tem escrita contundente”, “afiada”, “justa”, “impecável”, “impressionante”, “comovente”, “extraordinária”, “genial”? Todavia, se feita ressalva, se surge expressão como “narrativa frágil” ou “enredo confuso”, o mesmo escritor exige ensaio de 10 páginas com comprovações, numerosos excertos, argumentos técnicos, jurisprudência crítica etc. E, mesmo que tudo isso seja feito, ele ainda considerará a análise equivocada e mal intencionada.
Lógico que ninguém tem obrigação de realizar autocrítica, ou de meditar sobre meios e objetivos de sua comunidade. Tampouco podemos ignorar que todo artista possui relação delicada com suas criações, muito mais próxima da paternidade do que da reflexividade.
Fenômeno diferente e muito sério – ainda que decorrência natural da carruagem – é que as pessoas que se predisponham a remar contra a maré sejam taxadas de “antiéticas”. Ou seja, que a Ética do compadrio tenha sido oficializada! Até então, esses importunos que não se enquadravam perdiam “amizades”, ganhavam desafetos, tinham as portas fechadas, eram excluídos dos postos de trabalho, perseguidos por autoridades e afins. Mas negócio era dissimulado, ninguém escancarava razões. Marginalização, todavia, ganhou novos ares, os paneleiros batem no peito, dizem que são mesmo da brodagem, apontam o dedo e defendem que o “não-compadre” deveria se envergonhar, chegam a estimular abertamente que ele seja perseguido, constrangido com ofensas e até com ameaças!
Não só de compadres e deselegantes se faz o mundo. Há também aqueles que se omitem. Porque a lógica dos paneleiros fundamentalistas dialoga com um sentimento mais amplo, o da aversão ao risco. Se for preciso colocar alfaias na banda de jazz para entrar no circuito de eventos do Governo, que seja feito; se for necessário flertar com literatura de cordel para ter acesso às leis de incentivo, idem; tampouco há de se perder lugar de repórter de cultura ou fazer inimigo só pelo requinte de ser sincero e publicar um comentário negativo sobre livro, show, exposição, peça.
Maioria das pessoas continua procurando ser livre. Mas, se liberdade implica risco maior, que sejam travados combates mais apropriados, onde as perdas sejam calculadas, aceitáveis, normatizadas. Vivemos no Estado em que até greve é regulamentada! Aquela que deveria ser a manifestação máxima da desconformidade, do protesto, publicização de que todas as vias de negociação dentro do sistema foram por assembleias a baixo, restando só a ruptura, a radicalidade… Bem, a greve também passou a ser promovida dentro de molduras, de garantias que não sejam perdidos empregos ou salários. Pela mesma lógica, grevistas precisam atuar dentro de limites, além de sempre aceitarem as derrotas como parte do jogo, mesmo que elas signifiquem humilhação e condições degradantes.
Caberia, então, perguntar por qual razão orbitar nesses terrenos culturais e de crítica. Existem carreiras tão mais vantajosas financeiramente, são tão poucos os artistas que conseguem fortunas, seria tão estapafúrdia a riqueza entre críticos! Além de serem assim, próximas da pobreza material, há tantas lidas que combinam mais com a falta de liberdade, de princípios, de coragem! Indivíduo decide por profissão que praticamente lhe garante velhice sofrida, quando não indigente, e, ainda por cima, torna-se signatário de uma ética castradora, que o impedirá de olhar para trás com o orgulho de ter demonstrado suas impressões e crenças com honestidade.
Pergunta mais certeira pode ser outra: os irmanados na ética do compadrio convivem com tais conflitos? Os valores morais são construídos por uma teia complexa de heranças familiares, experiências educacionais, laços de amizade, voos subjetivos. De maneira que, sem assombro, a única dúvida producente talvez seja:
– Este texto não é de fato antiético, deselegante e despropositado?
Escrevi esses catorze parágrafos não como manifesto. Intuito é banal, de confissão: persistirei assim, deselegante e despropositado, solto das cordas do compadrio enquanto instituição, não por acreditar que seja viável mudar rumo das coisas, mas porque posso nada além. Seja como resolvam fichar minhas paredes (de ingênuas a reacionárias), meus 35 anos já plantaram fundo meus pés, nem quero nem tenho morada diferente.
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