Luan Sperandio | 15 de fevereiro, 2018
Lucas Berlanza é jornalista pela UFRJ e colunista do Instituto Liberal. Para usar suas próprias palavras, é uma testemunha do surgimento do que convencionou-se chamar de “Nova Direita”. Em busca de compreender melhor as bases intelectuais desse heterodoxo movimento político brasileiro, lançou o livro Guia Bibliográfico da Nova Direita. Trata-se da reunião de resenhas de 39 obras escolhidas pelo autor. Elas vão desde autores clássicos como de Edmund Burke, Frédéric Bastiat e Ludwig von Mises, até obra mais recentes de Luiz Felipe Pondé, Olavo de Carvalho e Bruno Garschagen, passando por obras de intelectuais ideologicamente contrários as ideias presentes da nova direita.
Além de melhor compreender o movimento, a obra é bastante útil para aprofundamento na formação de participantes que integram a nova direita, pois não necessariamente seus participantes conhecem o conteúdo dos livros analisados.
Nesta entrevista, Berlanza analisa os fatores que influenciaram a formação do movimento que é objeto de sua investigação exposta no livro.
SFLB: Você demonstra na obra que a nova direita não é um movimento homogêneo. Quais seriam as diferentes “facções” dela?
LB: A ideia de meu livro é estabelecer uma compreensão mais justa do fenômeno alcunhado, por mim e por outros atores sociais do Brasil contemporâneo, inclusive da imprensa tradicional, de “nova direita” – que consiste na emergência ou resgate de ideias sociais e políticas que atravessaram período de significativo ostracismo, particularmente durante a maior parte da Nova República. “Nova Direita” é, nesse contexto, muito mais uma expressão popular e simplificadora de diagnóstico desse quadro recente no palco do debate de ideias (sem qualquer substância científica, que adoto para fins de comunicação da minha proposta com uso já um tanto repetido e consagrado) que uma escola de pensamento coesa e calcada em princípios únicos e fixos, seguindo alguma espécie de cartilha ideológica.
Na realidade, entre os estudantes, internautas, leitores e figuras de toda ordem que se estão abrindo a essas ideias, entre eles eu mesmo, há quase tantas opiniões e matizes diferentes quanto há cabeças distintas. Meu livro, ainda que procure insinuar essas divisões em linhas gerais, se concentra em traçar, com base nas obras selecionadas, marcos de ideias – bem como suas genealogias – que circulam genericamente nesse meio, através de ensaios que constroem uma narrativa, com ênfase em sua dimensão mais intelectualizada, embasada em bibliografias específicas, de modo a afastar as deturpações e demonizações empregadas contra nós.
Grosso modo, essas bibliografias compreendem subcorrentes e tendências que se elaboram entre o pensamento liberal clássico, notadamente com base na matriz whig e na Escola Austríaca de Economia, e o conservadorismo de inspiração britânica. Incluí também grupos que estão ligados a esse mesmo fenômeno de contestação da hegemonia ideológica e que, mesmo não apreciando a identificação com o rótulo de “direitistas”, deixariam meu quadro necessariamente muito incompleto se não incluídos, como os anarcocapitalistas.
Na medida do possível, a partir dos livros, inseri ainda menções e apreciações críticas laterais a grupos que se concentram em uma dimensão temática específica, como os monarquistas, que se distinguem por uma posição sobre a forma de governo do país, e grupos um tanto desvinculados das preocupações teóricas liberais e conservadoras, como os defensores de uma intervenção militar e/ou de algum tipo de autoritarismo instrumental militarista, ideologia tipicamente brasileira, assim definida por Oliveira Viana, segundo a qual é necessário um regime de força para construir, tutelando o povo e as instituições, uma “sociedade liberal”.
SFLB: Dentro dessa nova direita existe um viés populista também?
LB: Na sua dimensão intelectual e bibliográfica – e como meu livro é um guia bibliográfico, essa é a faceta que mais se destaca nele -, certamente não há qualquer suporte à demagogia.
Sua essência predominante reside precisamente na defesa da liberdade econômica, acompanhada da responsabilidade individual, com o respeito às instituições, ancorado na prudência realista e na experiência histórica. Nada poderia ser mais alheio ao populismo, se por populismo entendermos a prática que justamente despreza o valor das instituições e esferas intermediárias da lei e da representatividade, bem como, no popular, a de lideranças que apenas dizem “o que a galera quer ouvir”, à revelia da verdade.
Contudo, se partirmos para uma análise do movimento social que vem recepcionando essas ideias e vasculharmos detidamente todos os indivíduos e movimentos que as vêm reivindicando como plataforma, principalmente quando se materializa na esfera político-partidária, acredito que não estaremos imunes a encontrar alegações ou conformações retóricas populistas. É nosso dever atentar para isso e não evitar a autocrítica.
SFLB: Convencionou-se dizer que a esquerda não leu Karl Marx e seus demais teóricos. Em sua opinião, a nova direita estuda, lê e se informa mais que a esquerda?
LB: Minha impressão é de que sim. Em nossas discussões, constatamos que autores como Hayek e Mises estão sendo lidos. Vejo a nossa direita contemporânea comparativamente mais interessada em indicações de leituras, enquanto muitos dos esquerdistas que nos cercam, em geral vinculados a uma elaboração do pensamento New Left, ao muitas vezes chamado “progressismo” contemporâneo – na verdade, um aborrecido atraso de vida -, estão muito mais preocupados com palavras de ordem que bradam o monopólio da virtude de que se sentem investidos, dispensando qualquer informação mais sofisticada para o que consideram suas “certezas científicas”.
Esteja certo ou não quanto a isso, porém, as deficiências ainda são extremas, refletindo um problema da população em geral. Vemos ainda uma porção de discussões estéreis baseadas em evidentes manifestações de analfabetismo funcional e ainda temos carência na leitura dos autores de esquerda – o que é relevante, e tanto assim penso que dedico uma seção em meu livro a obras de adversários e inimigos da “Nova Direita”.
SFLB: Você se define como um “liberal conservador”, um termo bastante criticado dentro da própria Nova Direita. Por que se define assim? Qual seria sua “definição estipulativa” para o termo?
LB: Expressão usada por autores como Victor Hugo, Merquior, Ubiratan Borges de Macedo, o historiador José Murilo de Carvalho, entre outros, o liberal conservador é, grosso modo, como o entendo, aquele que estabelece um casamento entre duas preocupações: a preocupação conservadora em valorizar uma unidade histórico-conceitual pátria, certo gradualismo de transformações, o ensejo a determinado valor da ordem e das instituições e códigos historicamente construídos em uma sociedade, por oposição ao puro abstracionismo revolucionário; e a preocupação liberal com a autonomia do indivíduo e o direito a uma ampla gama de liberdades que vão da expressão à iniciativa no mercado, passando pelo constitucionalismo e a representatividade.
Gosto dessa expressão porque tem uma serventia mais específica, dado que o conservadorismo se pode confundir com o tradicionalismo, usualmente antiliberal, e o liberalismo pode se manifestar em vertentes mais radicais que eu não acompanharia. Também gosto de parafrasear Hayek e me dizer um Old Whig burkeano, mas adaptado às cores pátrias e ao universo simbólico brasileiro.
SFLB: Na obra você diz que é “apenas uma testemunha” desse movimento. Você é favorável ao fusionismo?
LB: Na verdade, sou testemunha e parte integrante do fenômeno de que ofereço um panorama no livro. Ao dizer isso, quis deixar claro que os ensaios compilados refletem minha personalidade e minhas posições, não se limitando a qualquer espécie de relato objetivo.
Quanto ao fusionismo, prefiro não enxergar a questão raciocinando com base em “blocos” doutrinários, e sim com base em pautas. Libertários rothbardianos e liberais conservadores como eu, por exemplo, jamais seremos rigorosamente a mesma coisa; não há que fundir as duas tendências. Contudo, é inegável que temos interesses em comum; militemos (porque não temo essa palavra) e trabalhemos juntos, com civilidade, para atingi-los.
Todos os grupos crescem com isso e, por consequência, a sociedade. Dois torcedores do Fluminense podem ser absolutamente diferentes sob qualquer outro aspecto, mas nem por isso estão impedidos de cantar juntos pelo seu time no Maracanã.
SFLB: Desentendimentos entre figuras da nova direita acontecem com alguma frequência. Inclusive, na ocasião do lançamento de seu livro, houve polêmica que envolveu vários nomes do movimento. Acredita que após o impeachment essas brigas, cada vez mais comuns, tendem a enfraquecer o movimento antes de haver renovação de nossas instituições?
LB: O que aconteceu a respeito do meu livro foi uma exibição de ignorância e destempero, do tipo que pesa sobre os seus autores e promotores, mas que, na exata medida do peso e da centralidade que eles exibam, pode impactar o “movimento” ou o pensar político que pretendam representar.
Entretanto, entendo que, entre aqueles que encorajam a desunião e acreditam que não há problema na constante troca de farpas e aqueles que defendem a união incondicional e a submissão absoluta a uma única grande estratégia ou diretriz, sufocando a divergência em prol de um projeto amplo, eu sempre me coloquei no meio do caminho. Não concordo nem com uns, nem com outros. Acho que devemos ser civilizados e entender como e quando divergir e criticar, como e quando promover uma articulação saudável para os propósitos mais fundamentais que compartilhamos.
Sabemos que, nesse campo, as coisas não permanecem estacionárias. No momento em que escrevo esta resposta, grupos dentro da “nova direita” que outrora se “engalfinharam” – sem entrar no mérito de quem está certo ou quem efetivamente provoca a desinteligência – estão trocando elogios por enxergarem similaridades em seus programas. É difícil prever o que virá sem saber a que conclusões os diferentes grupos chegarão sobre a balança que pesa seus projetos particulares e o mínimo comum que querem para o Brasil.
SFLB: Em sua opinião, quais as principais razões para o surgimento dessa nova direita?
LB: A saturação com as ideias que se tornaram hegemônicas no imaginário brasileiro, sobretudo aquelas da patrulha do politicamente correto e do “xiismo” dos militantes das “minorias” e “justiceiros sociais”, estorvo perigosamente autoritário que passa longe de ser exclusivo do Brasil; o advento das redes sociais, facilitando o acesso e o intercâmbio de informações e produtos culturais e intelectuais; e, finalmente, a exaustão com o regime lulopetista, atingindo o ponto extremo sob a “gestão” de Dilma Rousseff, ensejando a busca por orientações que divirjam das matrizes em que tal regime se alicerçou.
SFLB: Muitas pessoas reclamam do clima polarizado que o país vem atravessando nos últimos três anos ou quatro anos. O movimento da Nova Direita é sustentável? E esse clima polarizado é saudável, tendo em vista ser uma resposta a antiga hegemonia da esquerda?
LB: Em condições normais de temperatura e pressão, o fato que chamamos de “Nova Direita” não será travado. Entendo que veio para ficar, bem como compreendo que a densidade do fenômeno tem mais relevância do que muitos dos próprios liberais e conservadores, talvez por excesso de ceticismo e acúmulo de frustrações, consentem em admitir. Contudo, seu sucesso na conquista do poder dependerá da capacidade de formação de lideranças e ocupação de espaços que institutos, movimentos e intelectuais efetivamente demonstrarem.
O Brasil experimentou a plena ação de projetos e convicções autoritários e lesivos à civilização e às nossas liberdades, projetos esses que permanecem ansiosamente à espreita e não cessam de oferecer demonstrações explícitas da própria barbárie. É de uma frigidez vexatória acolher a narrativa do terrível “clima de ódio”; o drama que vivemos demanda, como diria acertadamente Olavo de Carvalho, pessoas que não sejam fluidas como geleia. Sempre que um intelectual diz que somos histéricos demais, pergunto-me se ele sistematicamente menospreza o fato, por exemplo, de que temos 60 mil homicídios por ano.
SLFB: Por que você colocou o livro de Murray Rothbard separado das demais obras para entender o movimento da nova direita?
LB: Porque ele representa o libertarianismo em sua face extrema, o anarcocapitalismo, que rejeita fundamentalmente o rótulo de “direita”, mas interage e dialoga diretamente com os movimentos que se processam dentro das instituições e espaços de discussão e militância que compreendem liberais e conservadores.
Minha observação é de que a “Nova Direita” se materializa, sobretudo nas redes sociais e nos espaços e colunas de opinião dos think tanks que lê, em discussões e interações das quais fazem parte os autores que elenco e/ou as ideias cuja genealogia eles ajudam a elucidar. Conquanto os libertários (no sentido com que esse termo costuma ser usado no Brasil) e, especificamente, os rothbardianos não se consideram pessoas “de direita” e inclusive rechaçam a expressão, eles também integram essa mesma rede contemporânea de discussões, de maneira que o panorama oferecido pelo livro estaria capenga se não os incluísse.
Esta entrevista não necessariamente representa a opinião do Students For Liberty Brasil (SFLB). O SFLB tem o compromisso de ampliar as discussões sobre a liberdade, representando uma miríade de opiniões. Se você é um estudante interessado em apresentar sua perspectiva neste blog, envie um email para [email protected].